O
ciclismo é um desporto diferente dos outros. E a palavra que talvez
possa melhor explicar o porquê é a palavra “pelotão”. É uma
palavra com ressonâncias militares. E, na verdade, qualquer prova de
ciclismo é uma batalha – se de um dia – ou uma verdadeira
guerra, se de vários dias. Cada equipa um exército, com cada
elemento com os seus argumentos para contribuir para o desfecho da
batalha, da guerra. Cada exército, cada equipa, tem o seu general, o
seu chefe, e objectivos. Numa prova de três semanas a guerra é
mais complexa e terá um objectivo maior – a conquista do primeiro lugar
na geral, embora vários outros objectivos se possam equacionar –
as outras classificações, vitórias em etapas. Mas, ao contrário
das guerras convencionais, aqui “pelotão” há só um, o que
implica uma lógica compacta e fechada, com um código de honra, um
conjunto de regras não escritas, e que, num passado
que já terá passado, facilitou a cultura de doping que se tornou tão
intrínseca a este desporto. O pelotão do ciclismo
internacional foi, ao longo das décadas, tendo uma figura que
“dominava”, sendo habitualmente essa figura o melhor corredor,
que, também habitualmente, se fazia rodear da melhor equipa. Se
enumerarmos os “patrões” que o pelotão internacional foi tendo
desde os anos cinquenta enumeramos Fausto Coppi, Louison Bobet,
Jacques Anquetil, Eddy Merckx, Bernard Hinault, Miguel Indurain,
Lance Armstrong, Alberto Contador, Christopher Froome. A subida a
este estatuto de “patrão do pelotão” adquiria-se na Volta a
França. Uma vitória na Volta a França desde os anos cinquenta
resultou quase sempre, com poucas excepções, da combinação de
excelentes contra-relógios com boa montanha. Nas épocas de transição
entre patrões, anos onde se correram os Tours mais emocionantes
porque com mais incerteza no desfecho, ganharam escaladores
como Bahamontes, Charly Gaul, Pedro Delgado, Pantani. A Volta à
França domina tanto o imaginário do ciclismo internacional que
quase obliterou a existência de uma época ciclística durante todo
um ano, de Janeiro-Fevereiro a Outubro-Novembro, com múltiplas provas
a pedir habilidades e forças diferentes e a permitir vitórias a
diferentes tipos de ciclistas. Os ciclistas que contavam eram
primeiro o patrão e depois aqueles que, no alto das montanhas, no
Tour, conseguiam acompanhá-lo e, às vezes, desafiá-lo. Por isso
nos últimos anos havia ciclistas que quase só corriam o Tour e
algumas provas pouco antes e/ou pouco depois, tipo Armstrong. Por
isso a memória de Agostinho é a memória de o ver quase sempre naquele grupo
restrito de eg. dez corredores que se formava lá no alto,
entre 1969, a sua primeira participação, e 1980, a sua última
participação a terminar em top 10. A não ser com José Azevedo
enquanto gregário de luxo de Armstrong, isso nunca mais voltou a
acontecer. Ano após ano, o leigo do ciclismo espera de Rui Costa
isso mesmo, a sua presença entre os primeiros lá em cima. O
fenómeno vulcânico e inexplicável que era Agostinho cria esta
sombra, esta ansiedade. E este ano estamos onde estávamos: desiludidos.
Haja quem
explique que Rui Costa já foi Campeão do Mundo, que já fez pódio
em dois Monumentos mas que, muito provavelmente, nunca fará um top
10 no Tour.
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