quarta-feira, 13 de julho de 2016

Rui Costa e o seu problema com o Tour.


O ciclismo é um desporto diferente dos outros. E a palavra que talvez possa melhor explicar o porquê é a palavra “pelotão”. É uma palavra com ressonâncias militares. E, na verdade, qualquer prova de ciclismo é uma batalha – se de um dia – ou uma verdadeira guerra, se de vários dias. Cada equipa um exército, com cada elemento com os seus argumentos para contribuir para o desfecho da batalha, da guerra. Cada exército, cada equipa, tem o seu general, o seu chefe, e objectivos. Numa prova de três semanas a guerra é mais complexa e terá um objectivo maior – a conquista do primeiro lugar na geral, embora vários outros objectivos se possam equacionar – as outras classificações, vitórias em etapas. Mas, ao contrário das guerras convencionais, aqui “pelotão” há só um, o que implica uma lógica compacta e fechada, com um código de honra, um conjunto de regras não escritas, e que, num passado que já terá passado, facilitou a cultura de doping que se tornou tão intrínseca a este desporto. O pelotão do ciclismo internacional foi, ao longo das décadas, tendo uma figura que “dominava”, sendo habitualmente essa figura o melhor corredor, que, também habitualmente, se fazia rodear da melhor equipa. Se enumerarmos os “patrões” que o pelotão internacional foi tendo desde os anos cinquenta enumeramos Fausto Coppi, Louison Bobet, Jacques Anquetil, Eddy Merckx, Bernard Hinault, Miguel Indurain, Lance Armstrong, Alberto Contador, Christopher Froome. A subida a este estatuto de “patrão do pelotão” adquiria-se na Volta a França. Uma vitória na Volta a França desde os anos cinquenta resultou quase sempre, com poucas excepções, da combinação de excelentes contra-relógios com boa montanha. Nas épocas de transição entre patrões, anos onde se correram os Tours mais emocionantes porque com mais incerteza no desfecho, ganharam escaladores como Bahamontes, Charly Gaul, Pedro Delgado, Pantani. A Volta à França domina tanto o imaginário do ciclismo internacional que quase obliterou a existência de uma época ciclística durante todo um ano, de Janeiro-Fevereiro a Outubro-Novembro, com múltiplas provas a pedir habilidades e forças diferentes e a permitir vitórias a diferentes tipos de ciclistas. Os ciclistas que contavam eram primeiro o patrão e depois aqueles que, no alto das montanhas, no Tour, conseguiam acompanhá-lo e, às vezes, desafiá-lo. Por isso nos últimos anos havia ciclistas que quase só corriam o Tour e algumas provas pouco antes e/ou pouco depois, tipo Armstrong. Por isso a memória de Agostinho é a memória de o ver quase sempre naquele grupo restrito de eg. dez corredores que se formava lá no alto, entre 1969, a sua primeira participação, e 1980, a sua última participação a terminar em top 10. A não ser com José Azevedo enquanto gregário de luxo de Armstrong, isso nunca mais voltou a acontecer. Ano após ano, o leigo do ciclismo espera de Rui Costa isso mesmo, a sua presença entre os primeiros lá em cima. O fenómeno vulcânico e inexplicável que era Agostinho cria esta sombra, esta ansiedade. E este ano estamos onde estávamos: desiludidos. 
Haja quem explique que Rui Costa já foi Campeão do Mundo, que já fez pódio em dois Monumentos mas que, muito provavelmente, nunca fará um top 10 no Tour.

quarta-feira, 1 de junho de 2016

E agora, Rui?

E agora, Rui? Terminou a primeira parte da época e esta foi e não foi boa para Rui Costa. Top ten frequente, um pódio valente na Liége-Bastogne-Liége. Muitos pontos ganhos mas nenhuma vitória. E é de vitórias que se alimenta o ciclismo. Rui Costa termina o seu contrato este ano na Lampre. O seu rival Diego Ulissi acaba de ganhar duas etapas no Giro, e é italiano.
Rui Costa volta agora à Suíça, onde já foi feliz. Evita o Dauphiné onde estão quase todos os maus da fita. Qualquer coisa abaixo da vitória, para quem já ganhou a Volta à Suíça três vezes, terá um sabor amargo. E depois o Tour, o Everest. Onde Rui Costa desistiu em 2014, em 2015. Ele diz que, se calhar, é melhor vitórias em etapas do que um top ten. Para se diferenciar de Ulissi, não sei. Lembremos que, uma vez mais, o Rui vai para o Tour como se não tivesse equipa.

segunda-feira, 30 de maio de 2016

Philippe Thys


Philippe Thys descending the Tourmalet in the 1913 Tour de France


Philippe Thys foi o primeiro corredor a ter uma carreira "moderna". Nascido em Anderlecht, bairro de Bruxelas, em 1889, foi campeão belga de ciclo-cross em 1910, aos 21 anos. No ano a seguir venceu o Circuit Peugeot, uma espécie de Tour de l'Avenir daqueles tempos. Em 1912 correu o seu primeiro Tour de France e foi sexto. Corria pela equipa Peugeot onde o melhor era outro belga, Marcel Buysse, o primeiro de uma família de ciclistas. No ano  a seguir a história do Tour de France far-se-ia com dois belgas e um francês. A primeira história, mítica, tem a ver com Eugene Christophe, que, à frente da corrida, quebrou a forquilha da bicicleta ao descer o Tourmalet. Pelas regras de então teve que procurar um ferreiro e ele próprio, na forja, reparar a bicicleta. A partir daqui o francês Christophe afundou-se na classificação. Buysse passou para primeiro e, com Thys, revelou ser o melhor trepador: ganhou seis etapas no total, num total de quinze. O tempo perdido em - também - vários acidentes de bicicleta ofereceram a vitória aquele que parecia ser o segundo homem da equipa, Philippe Thys. Thys ainda não tinha 24 anos. Como seria 1914?
Em 1914 Thys já era um elemento importante do pelotão: participou em algumas corridas de um dia, mas o seu grande feito foi ter vencido o Tour sendo primeiro da primeira à última etapa. A maior ameaça desta vez foi o campeão francês Henri Pelissier, um apelido que se repetiria em outros ciclistas também. Thys trepou com os melhores e foi regular durante todas as etapas. Pelissier era melhor sprinter mas o Tour era agora uma competição por tempos, ergo... Thys nestas duas vitórias marcou o padrão de quase todas as vitórias daqui para a frente - subir com os melhores e nunca perder tempo nas restantes etapas. A única coisa que faltava para equiparar estas vitórias às actuais era ainda não existirem contra-relógios. E... aconteceu a Grande Gerra.
Philippe Thys conseguiu sobreviver à Grande Guerra, ao contrário de muitos dos seus concorrentes. Esteve na aviação francesa mas nos intervalos correu alguma coisa e, assim, ganhou os Paris-Tours de 17 e a Volta à Lombardia no mesmo ano. Sendo um corredor do Tour por excelência, também aqui marcou um padrão: ficava bem a um ganhador do Tour vencer também algumas clássicas. Naqueles tempos o Paris-Tours era muito importante, e a Volta à Lombardia foi ganha à frente de... Pelissier, o rival de 14!
E chegámos a 1919. Thys não estaria bem? Fez segundo no Paris-Roubaix, a mais importante corrida de um dia de então, atrás do rival Henri Pelissier... e abandonou o Tour no primeiro dia: um colega de equipa foi penalizado em meia hora por dar-lhe uma garrafa de água: então não era permitido!
Em 1920 Philippe Thys voltou à sua tática vencedora: subir com os melhores e não perder tempo nas outras etapas. O melhor trepador, e que tinha ganho o Tour de 1919, outro belga chamado Firmin Lambot, era pior rolador e, portanto, acabou terceiro a uma hora de distância. Os primeiros sete na classificação final eram belgas, A Bélgica tinha um je ne sais pas quoi para o ciclismo... Pélissier abandonara cedo com duas etapas ganhas...
Em 21 Philippe Thys não fez nada de especial: abandonou cedo no Tour, foi marcando presença noutras corridas. No fim do ano celebrou-se em Paris uma prova em circuito de estrada atrás de um motociclista: o "Criterium des As" - uma prova hoje lendária que durou até 1990 e que foi ganha por todos os campeões e onde Acácio da Silva foi terceiro em 86! O primeiro vencedor? Philippe Thys. Em 22 Thys chegou ao Tour disposto a ganhar a quarta. Mas as avarias mecânicas também aconteciam a Thys e na etapa dos Pirenéus, a 6ª, Thys perdeu mais de três horas. Vingou-se vencendo as três etapas seguintes, mas era tarde demais. Segunda vitória do trepador Firmin Lambot e a sétima vitória belga consecutiva! Em 1923 Henri Pélissier finalmente conseguia ganhar e assim quebrar a hegemonia belga. Philippe Thys começou mas não acabou, não se fazendo notar: com 34 anos, seria o fim? Thys portou-se melhor no Tour de 1924, mostrou-se, ganhou duas etapas, mas acabou 11º. Era a vez do primeiro italiano ganhar o Tour, Bottecchia. Havia outro Buysse na estrada, o Lucien, e era terceiro, a primeira grande figura luxemburguesa do ciclismo, Frantz, era segundo. Todos bem mais novos. Nenhum deles conseguiria repetir as vitórias de Thys: só em 1955 voltaria a acontecer um triplo vencedor do Tour de France.  Thys ainda participou no Tour de 1925, mas abandonou a meio ser ter sido top 10 em nenhuma etapa. Quando Bobet ganhou o seu terceiro Tour em 55, Thys esteve presente para o cumprimentar: o seu recorde durara 35 anos! O inventor do Tour, Henri Desgranges, não lhe poupou elogios e perguntava-se: se não tivesse acontecido a Grande Guerra, quantos Tours teria vencido Philippe Thys? 
Philippe Thys foi o primeiro grande corredor de ciclismo onde as suas vitórias no Tour de France constituiram a parte mais importante de um brilhante palmarés. E ainda hoje é o segundo belga que mais Grandes Voltas venceu, ultrapassado só por... Merckx!
Bill McGann do site "BikeRaceInfo" escreve apenas: "I think Belgian racer Philippe Thys is the greatest Tour de France rider in history!"

sexta-feira, 4 de março de 2016

Odiel Defraeye.

Não há coração que vibre mais com o ciclismo do que o coração belga e, neste, o ventrículo esquerdo é flamengo. E este bater, este latir mais forte do que todos, comecou a ouvir-se com mais força em 1912 quando Odiel Defraeye foi o primeiro belga a ganhar o Tour de France. Defraeye, não Defraye como os franceses escrevem, nem Odile, já era conhecido como um bom ciclista, mais ainda quando nesse ano de 1912 conseguiu ganhar o Volta à Belgica. Contratado pela Alcyon para ajudar o francês Gustave Garrigou a repetir a vitória no Tour, rapidamente se percebeu que Odiel estava mais forte. E a vitória foi sua. Repetia o feito do francês Petit-Breton, o único a ganhar antes os dois Tours. Defraeye foi um herói fugaz mas decisivo para a história do ciclismo belga: a Volta à Flandres inventou-se em 1913 e os seis Tours de France seguintes foram ganhos por belgas. Odiel fora campeão de Flandres em 1910 e da Bélgica em 1911. O anus mirabilis de 1912 teve uma sequência efémera com uma vitória "longe" na Milano-Sanremo de 13. O Tour de 13 foi seu até à sétima etapa em que abandonou. Outro belga virá a ganhar. Veio a Grande Guerra e tudo parou. 



Depois da Grande Guerra Odiel voltou a pegar na bicicleta para ganhar algum dinheiro extra. O êxito foi escasso. Montou um negócio em De Panne, terra ciclista da Flandres ocidental, onde acabou por morrer.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Octave Lapize.

Sobre este corredor não consegui apurar grandes facetas pessoais. O número "três" define a sua carreira. Nascido em 1887 em Paris filho de migrantes do Auvergnat, em 1909 distingue-se ao ganhar um primeiro Paris-Roubaix. Ganha o Tour de 1910 dentro de uma equipa, a Alcyon - uma marca de bicicletas - muito dividida entre ele e François Faber, corredor bem mais conhecido e com mais palmarés mas, na realidade, com a mesma idade. O Tour de 1910 ficou conhecido por esta enorme rivalidade e por numa etapa gigantesca de 326 km pela primeira vez se ter subido vários grandes cols dos Pirenéus entre os quais o Tourmalet. Lapize ganhou esta e a outra etapa dos Pirenéus mas chamou os juízes da organização de "Assassinos!", pela dureza do percurso. Com esta acusacão ficou para a história. Naqueles tempos a definição de estrada era o que a organização quisesse. Lapize nunca mais voltou a terminar um Tour. Pelo contrário venceu três vezes seguidas o Paris-Roubaix, o Campeonato Nacional Francês e o Paris- Bruxelles. Em 1911 venceu as três provas de um dia mais importantes que saiam de Paris, -Roubaix, -Tours e -Bruxelles.
Três anos depois do início da Primeira Grande Guerra, Octave Lapize, piloto de aviões, foi abatido e morreu num hospital de campanha.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

François Faber.

Quando se fala de ciclismo fala-se de França, da Bélgica, de Itália. Mas, logo ali ao lado, um pequeno país como o Luxemburgo, com o tamanho e a população do distrito de Aveiro, já teve quatro vencedores do Tour de France. O primeiro aconteceu logo em 1909 e dava pelo nome de François Faber.
O ciclismo, então como hoje, era um desporto popular onde os campeões habitualmente surgiam das  camadas menos favorecidas da população. François Faber trabalhava nas docas quando comprou a sua primeira bicicleta e, aos 19 anos, decidiu experimentar a competicão. Filho de um luxemburguês e de uma francesa, manteve a cidadania do pai embora sempre residisse em França. É possível que usasse esse subterfúgio para fugir ao serviço militar. Mas não o terá feito por cobardia pois, em 1914, alistou-se na Legião Estrangeira e morreu na frente da Primeira Grande Guerra, um ano depois.

Os corredores grandes - François Faber era alto para a época, e forte, ou pesado - têm um handicap óbvio no ciclismo - as subidas. Naqueles tempos não se subia tanto assim e François Faber até não subia mal. Também, oito décadas depois, Indurain não era pequenino e trepava o que era preciso. Faber começou a correr em 1906, portanto, como independente. Em 1907 tem um contrato com uma equipa e já brilha aqui e ali no Tour. Tem 20 anos. Em 1908 é segundo e Petit-Breton faz a sua famosa profecia "Je suis convaincu que cet homme-là sera imbattable l'an prochain." Faber termina o ano a ganhar a Volta à Lombardia, a sua primeira clássica.
Em 1909 ganha o Paris-Bruxelles e destroça a concorrência no Tour ganhando cinco etapas seguidas - feito ainda não igualado - e terminando primeiro. L'Auto publicaria  "Le géant de la route : François Faber, ses débuts, sa carrière, ses Tours de France, comment il s'entraîne..."
Faber é então conhecido como "le géant de Colombes", onde vive. Um meio-irmão mais velho, Ernest Paul, também é ciclista e é conhecido como "Ernest Faber" no pelotão embora tenha pai diferente e, portanto, seja francês e não luxemburguês. François Faber é um herói, um homem famoso. Que porém, na época de defeso, no inverno 1909-10, volta a trabalhar nas docas.


 
A época ciclista de 1909 tinha terminado com uma vitória de Faber no Paris-Tour, muito discutida: o vencedor "real", a nova coqueluche francesa Oscar Lapize, tinha-se enganado no percurso, coisa naqueles tempos muito frequente. Em 1910 Lapize ganha Paris-Roubaix e Paris-Bruxelles. Faber não dá sinal de vida. No Tour correm na mesma equipa mas esta divide as suas lealdades e acontece muita faca e alguidar durante as etapas. Uma queda de Faber provocada por um cão - lembram-se de Agostinho? - decide a corrida a favor de Lapize. Faber é segundo. Faber vinga-se ganhando sem espinhas o seu segundo Paris-Tours, onde Lapize... não comparece.
Faber nunca se recompôs por completo desse Tour perdido por tão pouco. Em 1911 ganhou um Bordéus-Paris e em 1913 um Paris-Roubaix. O Tour era agora um pouco mais acidentado - subia-se mais - e Faber contentava-se em ganhar etapas. Em 1913 é quinto, nono em 1914. Em 1913 casa-se e visita pela única vez na sua vida o seu país, o Luxemburgo, a convite do Grão-Duque.
Quando da sua morte nas trincheiras a sua esposa tinha dado à luz, dias antes, uma filha.

No Luxemburgo disputa-se em sua honra uma prova modesta, de um dia, o GP Francois Faber. Nos anos oitenta venceu-a um luso-luxemburguês chamado Francis da Silva. É o irmão mais velho de Acácio da Silva.

domingo, 10 de janeiro de 2016

E agora, Rui?

Rui Costa pode ter no ano de 2016 uma época decisiva. É o terceiro de três anos de contracto com a única equipa italiana WorldTour, a Lampre. Rui Costa em 2013 prometeu no Tour ser um corredor GC - para a classificação geral - de mão-cheia. Se não fosse ter precisado de ficar a apoiar Valverde numa determinada etapa, o Rui parecia capaz de facilmente fazer um top dez - eventualmente não ganhando as etapas que ganhou. Vinha de ser Campeão do Mundo e, portanto, parecia um dos corredores all-rounders - isto é, capazes de ganhar em todos os terrenos - mais capazes do circuito. Dois anos depois o que ganhou Rui Costa? Uma Volta à Suiça em 2014, a terceira seguida, e uma etapa no Dauphiné em 2015. Para um qualquer outro corredor português seria muito, para o Rui foi pouquito. Outros pódios - eg. Lombardia em 2014 - e quases-pódios não desfizeram o facto de para o site CyclingNews o Rui nem constar nos ciclistas que "em 2016 têm que provar alguma coisa". O Rui parece que não conta. A Lampre, entretanto contratou - surpreendentemente -  a estrela sul-africana Louis Meintjes, de 23 anos, que foi décimo na Vuelta do ano que passou. Just in case...

Rui, põe-te a pau...

PS.: na Eurosport em 2014 toda a publicidade da Lampre-Merida girava à volta de Rui Costa, então Campeão do Mundo. Em 2015 a estrela publicitária era Sacha Modolo, um italiano...